Em Destaque, Notícias · 27 novembro 2020

Revista Consultor Jurídico

O debate que envolve a essencialidade da atividade de supermercados e o trabalho em feriados ganhou protagonismo desde que a então Medida Provisória 388/2007, convertida na Lei 11.603/2007, e que na atual redação conferida à Lei 10.101/2000 trouxe a seguinte disposição:

“Artigo 6º-A — É permitido o trabalho em feriados nas atividades do comércio em geral, desde que autorizado em convenção coletiva de trabalho e observada a legislação municipal, nos termos do artigo 30, inciso I, da Constituição”.

Para compreender o contexto da referida legislação, é importante nos debruçarmos sobre a exposição de motivos da então Medida Provisória (por Carlos Roberto Lupi):

“9. A partir dessas discussões, foi firmado protocolo de entendimentos celebrado entre o Ministério do Trabalho e Emprego e as entidades representativas dos empregadores e dos trabalhadores, com o objetivo de envidar esforços para a aprovação de proposta legislativa visando a regulamentar o trabalho aos domingos e feriados nas atividades do comércio em geral.

10. Por meio desse protocolo as partes firmaram compromisso de apoio público à aprovação, pelo Congresso Nacional, de proposta legislativa para regulamentar o trabalho aos domingos no comércio em geral, que culminou com a proposta de Medida Provisória que ora se apresenta, a qual pretende alterar a Lei nº 10.101, de 2000, determinando que o referido repouso remunerado coincida, com o domingo pelo menos uma vez no período máximo de três semanas, e ainda regulamentando a possibilidade do exercício do trabalho nos feriados, mediante autorização de convenção coletiva do trabalho.

11. Vale acrescentar que a referida preposição está em consonância com o texto da Constituição Federal que consagra a proteção da família (CF, artigo 206, caput) bem como insere o lazer como direito fundamental social (CF, artigo 6o).

12. É necessário, ainda, registrar que a Constituição Federal reconhece a legitimidade das convenções e acordos coletivos de trabalho (CF, artigo 7o, inciso XXVI). Assim, o texto proposto, ao estipular mecanismos de negociação coletiva como pressuposto para que se permita o trabalho nos feriados, se coaduna com o dispositivo constitucional em apreço”. (grifos dos autores)

Nota-se que a vontade do legislador era, portanto, regulamentar o exercício do trabalho nos feriados por meio das negociações coletivas, visando à proteção da família e do direito social ao lazer do trabalhador.

Ao analisar normas coletivas que regulamentam o trabalho nos supermercados em feriados, nota-se que, em geral, o que se assegura aos trabalhadores, além daquilo que a legislação já impõe [1], é uma folga compensatória, vale transporte gratuito e um determinado valor creditado em folha, cartão alimentação ou fornecimento de alimentação no local de trabalho. Regulamenta-se, também, a proibição do trabalho nos feriados de 25 de dezembro, 1º de janeiro e, em algumas bases, 1º de maio e até sexta-feira da Paixão.

Assim, entende-se que, quando os sindicatos regulamentam o trabalho em feriados, o que fazem é buscar algumas vantagens financeiras aos trabalhadores que laboram nessas ocasiões, propiciando a substituição do dia de feriado para lazer e descanso por outros dias, assegurando a proibição do trabalho em feriados específicos considerados mais significativos.

Tomando como base a legislação nacional, os sindicatos dos trabalhadores nos supermercados (que, geralmente, são ecléticos e representam os trabalhadores de todo o comércio) entendem que, sem convenção coletiva de trabalho regulamentando especificamente o trabalho em feriados, este não pode ocorrer.

Na prática, portanto, após o término da vigência das convenções coletivas de trabalho sem que os sindicatos tenham firmado novo instrumento, os sindicatos laborais entendem que os trabalhadores dos supermercados não podem trabalhar em feriados, o que culmina, por vezes, em propositura de ações judiciais que buscam decisões no sentido de obrigar os supermercados a se abster de utilizar essa mão de obra em tais ocasiões.

Nesse contexto, a jurisprudência é dividida, considerando que uma parte entende que sem a regulamentação por meio de Convenção Coletiva de Trabalho o trabalho em feriados nos supermercados não deve ser permitido; e, outra parte, entende que tal legislação não se aplica a atividade dos supermercados, pois essa é essencial e tem regulamentação específica. E é exatamente este segundo posicionamento que se pretende expor.

Com efeito, importante notar que tanto a legislação ora mencionada, quanto à exposição de seus motivos, ao falar da regulamentação do trabalho em feriados, fala em comércio geral. Esse ponto é de extrema importância, pois é o fundamento do deslinde de toda a controvérsia que circunda o tema em relação aos supermercados. Isso porque a legislação confere tratamento diferenciado ao comércio geral em relação àquelas atividades que entendem ser essenciais.

O Decreto 27.048/49, que regulamenta a Lei 605/49, dispõe que:

“Artigo 1º — Todo empregado tem direito a repouso remunerado, num dia de cada semana, perfeitamente aos domingos, nos feriados civis e nos religiosos, de acordo com a tradição local, salvo as exceções previstas neste Regulamento.

(…)

Artigo 7º É concedida, em caráter permanente e de acordo com o disposto no § 1º do artigo 6º, permissão para o trabalho nos dias de repouso a que se refere o artigo 1º, nas atividades constantes da relação anexa ao presente regulamento”. (grifo dos autores)

Analisando a relação anexa citada pelo artigo 7º, encontra-se a seguinte disposição:

“II — COMÉRCIO


1) Varejistas de peixe.

2) Varejistas de carnes frescas e caça.

3) Venda de pão e biscoitos.

4) Varejistas de frutas e verduras.

5) Varejistas de aves e ovos.

6) Varejistas de produtos farmacêuticos (farmácias, inclusive manipulação de receituário).

7) Flores e coroas.

8) Barbearias (quando funcionando em recinto fechado ou fazendo parte do complexo do estabelecimento ou atividade, mediante acordo expresso com os empregados).

9) Entrepostos de combustíveis, lubrificantes e acessórios para automóveis (postos de gasolina).

10) Locadores de bicicletas e similares.

11) Hotéis e similares (restaurantes, pensões, bares, cafés, confeitarias, leiterias, sorveterias e bombonerias).

12) Hospitais, clínicas, casas de saúde e ambulatórios.

13) Casas de diversões (inclusive estabelecimentos esportivos em que o ingresso seja pago).

14) Limpeza e alimentação de animais em estabelecimentos de avicultura.

15) Feiras-livres e mercados, comércio varejista de supermercados e de hipermercados, cuja atividade preponderante seja a venda de alimentos, inclusive os transportes a eles inerentes”. (grifo dos autores)

Assim, tem-se que, desde 1949, a legislação concede, em caráter permanente, permissão para o trabalho em feriados nos comércios da relação que foi parcialmente acima transcrita.

Fundamental ressaltar também que a redação dada pelo Decreto 9.127/2017, que incluiu nesse rol expressamente os supermercados e hipermercados, somente esclareceu o que sempre esteve disposto em referida norma: supermercados sempre foram atividades essenciais, entendimento esse que decorre da simples leitura dos primeiros itens da relação ora debatida (venda de peixes, carnes, ovos, frutas e verduras etc.).

Por todos os aspectos até aqui mencionados, portanto, resta claro que não há de se falar em proibição do trabalho nos supermercados em feriados em razão de ausência de norma coletiva que o regulamente, vez que a legislação já concedeu, em caráter permanente, permissão para o trabalho nestas condições neste setor.

Outrossim, para além dos aspectos legais até aqui mencionados, a questão agora tem como cenário a pandemia desencadeada pelo novo coronavírus que, por impor restrições e até impedimento ao funcionamento de diversas atividades econômicas, obrigou o legislador a conceituar o que são atividades essenciais neste contexto, o que o fez no §1º do artigo 3º do Decreto 10.282/2020, vez que essas não podem ter suas atividades restritas, muito menos impedidas:

“§1º. São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população” (grifo dos autores).

E assim, em um rol exemplificativo, incluiu como atividades essenciais:

“XII — produção, distribuição, comercialização e entrega, realizadas presencialmente ou por meio do comércio eletrônico, de produtos de saúde, higiene, limpeza, alimentos, bebidas e materiais de construção” (grifos dos autores).

Ora, tendo por finalidade a comercialização de produtos de higiene, limpeza, alimentos e bebidas, os supermercados são, indiscutivelmente, atividades essenciais.

Em que pese o objetivo dessa norma não seja tratar do trabalho nas atividades essenciais, não se pode ignorar uma conceituação normativa sobre o caráter essencial da atividade de supermercados, sobretudo neste período de pandemia, no qual limitar o acesso da população a itens de alimentação, higiene e limpeza pode ter graves consequências à saúde, tanto por limitar o acesso a tais produtos em dias feriados, quanto por acabar gerando aglomeração em tais estabelecimentos nos dias que os antecedem, o que evidentemente favorece a disseminação do novo coronavírus.

O impacto da pandemia nas atividades econômicas destacou, portanto, o caráter essencial de algumas atividades, entre elas a do comércio de gêneros alimentícios, pois fundamentais à manutenção da vida e da saúde das pessoas.

Em consonância com este entendimento está a decisão relatada aos 9 de junho de 2020 pelo Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Caputo Bastos nos autos do processo nº TST-Ag-TutCautAnt-746-90.2020.5.09.0000, na qual dispõe que:

“(…) Como consignado na d. decisão ora agravada, o Decreto nº 9.127 de 16 de agosto de 2017 alterou o Decreto 27.048/1949, que regulamentou a Lei nº 605, de 5 de janeiro de 1949, para incluir o comércio varejista de supermercados e de hipermercados no rol de atividades autorizadas a funcionar permanentemente aos domingos e aos feriados civis e religiosos. 5. Em uma primeira análise, é possível concluir que, embora exista uma lei que limita de funcionamento do comércio em geral em dias de feriados à prévia autorização em convenção coletiva de trabalho (Lei nº 10.101/2001), os supermercados e hipermercados não se encontram abrangidos pela referida norma, porquanto não se inserem na classificação de estabelecimentos de “comércio em geral”, nos moldes previstos no artigo 6º-A, da Lei nº 10.101/2001. Isto porque, para eles, há legislação específica que autoriza funcionamento em domingos e feriados, independentemente de disposição prévia em convenção coletiva do trabalho. Deve-se primar, nesse caso, pelo princípio da especialidade da norma. Constata-se, nesse mister, que a lei traz uma previsão genérica e não veda que o decreto regule as hipóteses excepcionais. 6. Ademais, sobreleva notar que o Decreto nº 9.127/2017 criou uma justa expectativa para as partes, que definem a sua conduta de acordo com a sua previsão. Assim, tem-se que a pretensão recursal tem plausibilidade apta a demonstrar o preenchimento primeiro requisito necessário para a concessão da tutela vindicada. 7. Já o periculum in mora, como afirmado, decorre da possibilidade de a demora na decisão conclusiva do recurso vir a trazer danos irreparáveis à parte, tendo em vista o atual cenário e a situação excepcional pela qual passa o país, diante da pandemia provocada pelo novo Coronavírus. Robustece o perigo da demora o fato de a atividade exercida pela ora agravada, de comercialização de higiene, alimentos e bebidas estar inserida no rol de atividades essenciais, previstas no Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, que regulamenta a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020″.

Por todos esses aspectos, portanto, conclui-se que não há de se falar em qualquer restrição ao trabalho nos supermercados em feriados, nem sequer vinculando este à regulamentação por meio de normas coletivas, notadamente no período de pandemia no qual nos encontramos.


[1] Lei nº 605/49: “Artigo 9º — Nas atividades em que não for possível, em virtude das exigências técnicas das empresas, a suspensão do trabalho, nos dias feriados civis e religiosos, a remuneração será paga em dobro, salvo se o empregador determinar outro dia de folga”.

Por Ricardo Calcini e Caroline da Purificação Ambrosin Kortstee de Campos

Ricardo Calcini é mestre em Direito pela PUC-SP; professor de Direito do Trabalho da FMU; especialista nas Relações Trabalhistas e Sindicais; organizador do e-book digital “Coronavírus e os Impactos Trabalhista” (Editora JH Mizuno); coordenador do e-book “Nova Reforma Trabalhista” (Editora ESA OAB/SP, 2020); organizador das obras coletivas “Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista” (Editora LTr, 2019) e “Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada” (Editora JH Mizuno, 2019); coordenador do livro digital “Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões” (Editora Eduepb, 2018); palestrante e instrutor de eventos corporativos “in company” pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe.

Caroline da Purificação Ambrosin Kortstee de Campos é advogada especialista em Direito do Trabalho e atua no setor supermercadista desde 2013.